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Aves de rapina da Mata Atlântica
Por: Willian Menq | 06 de outubro de 2016
 
 


Gavião-pombo-pequeno (A. lacernulatus).
Espécie endêmica da Mata Atlântica.
Foto: Willian Menq

A Mata Atlântica é um mosaico de paisagens variadas, representada pelas florestas litorâneas, com seus manguezais e restingas, florestas de baixada e de encosta da serra do mar, florestas interioranas, matas de araucárias e campos de altitude (Campanili & Prochnow 2006).

Atualmente está reduzida a remanescentes isolados de diferentes tamanhos que somados representam cerca de 10% de sua área original. Mesmo assim, ainda abriga um elevado numero de espécies de aves, com 891 táxons, sendo 213 endêmicos (Lima 2013).

Na Mata Atlântica ocorrem 74 espécies de aves de rapina, sendo oito endêmicas e três provavelmente extintas. Mais da metade das espécies são florestais, e uma parte significativa está associada a outros habitats, incluindo ambientes abertos naturais ou antrópicos, como é o caso da águia-cinzenta (Urubitinga coronata), ou habitats altamente específicos como é o caso do gavião-caranguejeiro (Buteogallus aequinoctialis), exclusivo dos manguezais.

Ressalta-se a presença de pelo menos seis espécies migratórias no bioma. Dessas, o gavião-bombachinha (Harpagus diodon), gavião-tesoura (Elanoides forficatus) e o sovi (Ictinia plumbea) utilizam a Mata Atlântica como área reprodutiva, enquanto que a águia-pescadora (Pandion haliaetus) e o falcão-peregrino (Falco peregrinus) como área de invernagem. Já o gavião-papa-gafanhoto (Buteo swainsoni) é um migrante raro registrado de passagem em alguns trechos da Mata Atlântica, especialmente no PR, SC e RS, rumo ao sul do continente.

Alguns rapinantes são exclusivos das florestas do nordeste, como é o caso do gavião-de-pescoço-branco (Leptodon forbesi), enquanto que outros, como o gavião-de-sobre-branco (Parabuteo leucorrhous) e a coruja-listrada (Strix hylophila), são encontrados quase que exclusivamente nas matas de araucária presentes no sul e sudeste do Brasil, em altitudes que variam de 1.000 a 3.000 m. O gavião-pombo-pequeno (Amadonastur lacernulatus) é praticamente restrito às florestas que acompanham a costa brasileira, ocorrendo do sul da Bahia até Santa Catarina. Já o gavião-pombo-grande (Pseudastur polionotus) ocorre em toda extensão do bioma, desde o nordeste até o Rio Grande do Sul, incluindo as matas interioranas do Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais.

A caburé-acanelado (Aegolius harrisiii), considerada enigmática por muitos observadores de aves e ornitólogos, possui uma preferência de habitat interessante na Mata Atlântica. Com base nos registros existentes, a coruja aparentemente evita florestas altas e bem preservadas, optando por matas secundárias e borda de matas, talvez como forma de evitar a predação por corujas maiores.

Na porção nordeste da Mata Atlântica, especialmente no sul da Bahia e norte do Espírito Santo, nota-se a presença de várias aves tipicamente amazônicas  (Batalha-Filho et al. 2013), dentre elas o falcão-críptico (Micrastur mintoni), o tanatau (Micrastur mirandollei) e o gavião-ripina (Harpagus bidentatus). De acordo com alguns autores, a ocorrência dessas espécies na Mata Atlântica sugere que ambos os biomas estiveram interligados no passado.


Alguns tipos vegetacionais presentes no domínio da Mata Atlântica, (A) Floresta Estacional Semidecidual, P.E. Morro do Diabo/SP; (B) Campos de altitude, Serra da Mantiqueira/SP; (C) Matas de Araucária, Caxias do Sul/RS; (D) Floresta Ombrófila Densa (Serra do Mar), Morretes/PR. Fotos: Willian Menq.

As mais raras

Tauató-pintando (Accipiter poliogaster) – O tauató-pintado apresenta um comportamento discreto, elusivo e ágil, podendo facilmente passar despercebido em inventários ornitológicos, justificando a carência de informações biológicas da espécie. Na Mata Atlântica ocorre na região sul e sudeste, com registros recentes desconhecidos no Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia (ICMBio 2008). O gavião parece ter uma clara preferência pelas florestas de araucária ou com vegetação pouco densa com certo grau de perturbação.

Caranguejeiro (Buteogallus aequinoctialis) - É exclusivo dos manguezais, e por esse mesmo motivo desapareceu de muitos trechos do litoral Brasileiro. Originalmente ocorria em toda a faixa litorânea com mangues, desde a foz do Oiapoque (Amapá) até o Paraná. Atualmente, na Mata Atlântica, suas populações estão restritas a algumas áreas do litoral nordestino (PB, PE, AL e SE), e nas baías de Paranaguá e de Guaratuba no Paraná. No restante do litoral provavelmente tenha se extirpado, ausente de registros.

Gavião-de-penacho (Spizaetus ornatus) - Águia florestal bastante rara, o desmatamento excessivo e a caça contribuíram significativamente para o desaparecimento da espécie em vários trechos da Mata Atlântica. Além da raridade natural e das ameaças, S. ornatus apresenta um comportamento tímido, plana pouco acima do dossel da mata e dificilmente vocaliza. Ocorre do sul da Bahia até o Rio Grande do Sul.

Harpia (Harpia harpyja) - É uma das águias mais possantes e raras das Américas, muito desejada por estudiosos e observadores de aves. Conta com poucos registros na Mata Atlântica e são escassas as áreas que ainda dispõem de presas potenciais e território para abrigar a espécie. Na região sudeste, sua ocorrência está limitada aos trechos mais extensos e preservados da Mata Atlântica litorânea. No Espírito Santo conta com registros recentes na Reserva Natural da Vale do Rio Doce (Magnago 2015) e na Bahia nos complexos de montanhas Serra das Lontras-Javi e na Estação Experimental Pau-Brasil (ICMBio 2008; Santos 2015). Já em São Paulo, os últimos registros foram na região de Cananeia e nos Parques Estaduais de Jacupiranga e Intervales (Galetti et al. 1997; Willis & Oniki 2003; ICMBio 2008). No sul do Brasil a harpia ocorre principalmente na Serra do Mar paranaense e catarinense (Scherer-Neto & Ribas 2004; ICMBio 2008), além de provavelmente habitar alguns fragmentos florestais no sul e oeste do Paraná, especialmente o Parque Nacional do Iguaçu/PR, que faz divisa com a floresta de Misiones (Argentina). Recentemente, Meller (2015) confirmou a presença da espécie no Parque Estadual do Turvo (noroeste do RS), através de um avistamento de um indivíduo adulto nas dependências do parque. O parque também faz divisa com Missiones, onde a espécie conta com alguns registros, inclusive de nidificação. Apesar do grande tamanho, é discreta e difícil de detectar, costuma ficar no interior da mata, não plana alto e dificilmente voa sobre a mata, também raramente pousa em locais expostos ou cruza áreas abertas, como rios ou trilhas na mata.

Uiraçu (Morphnus guianensis) – É ainda mais raro que a harpia, encontra-se quase extinto da Mata Atlântica. Até algumas décadas atrás, a ave contava com registros em vários Estados do sul e sudeste, incluindo o sul da Bahia. Atualmente, registros da espécie na Mata Atlântica são raríssimos, sendo possível que já tenha se extirpado de muitas regiões. Os registros mais recentes foram obtidos por Albuquerque et al. (2006) na Serra Geral em Grão Pará/SC, por Costa-Araújo et al. (2015) em um fragmento de floresta no sul da Bahia, e por Moraes et al. (2015) na Reserva do Meleiro, em Felixlândia/MG, a cerca de 80 km fora do limite da Mata Atlântica. Também conta com um avistamento recente feito por observadores de aves no Parque Estadual de Intervales/SP (NTB 2015).


Alguns rapinantes raros da Mata Atlântica. À esquerda, falcão-críptico (Micrastur mintoni) registrado em Linhares/ES, Foto: Gustavo Magnago; ao centro, falcão-de-peito-vermelho (Falco deiroleucus) em Alfredo Chaves/ES, Foto: Joselito Nardy Ribeiro; à direita, tauató-pintado (Accipiter poliogaster) em Nova Trento/SC, Foto: Willian Menq.

Falcão-críptico (Micrastur mintoni) - Falcão raro, restrito as matas de baixada do sul da Bahia e norte do Espírito Santo. Quase foi considerado extinto da Mata Atlântica, ficou sem registros no bioma por quase 35 anos, até que Simon & Magnago (2013) redescobriram a espécie no norte do Espírito Santo. Na Bahia a espécie ficou sem registros por oito décadas, até que foi redescoberto por Magnago (2014) na Reserva da Veracel, em Santa Cruz Cabrália/BA. A perda de habitat, a raridade natural e o comportamento discreto da espécie podem explicar por que permaneceu sem registros por várias décadas na Mata Atlântica.

Tanatau (Micrastur mirandollei) - Também restrito as matas de tabuleiro do norte do Espírito Santo e sul da Bahia. Ficou sem registros na Mata Atlântica por quase três décadas, até que foi redescoberto por um grupo de observadores de aves na Reserva Natural Vale, em Linhares/ES (Coppede 2016). Assim como os outros Micrastur, é discreto e de difícil observação, gosta de habitar a parte mais alta da floresta.

O M. mirandollei assim como o M. mintoni provavelmente estão seriamente ameaçados de extinção na Mata Atlântica. São escassas as informações biológicas dessas espécies, e seus status populacionais na Mata Atlântica são desconhecidos, contando com pouquíssimos registros pontuais.

Falcão-de-peito-laranja (Falco deiroleucus) - Trata-se de um dos falcões mais raros do Brasil e das Américas (Cade 1982). Habita regiões densamente florestadas, com clara preferência por áreas adjacentes a rios e paredões rochosos, onde nidifica. Gosta de pousar no alto de árvores secas e penhascos, de onde sai para capturar aves (andorinhões, periquitos e pombos) (Sick 1997). Na Mata Atlântica, avistamentos recentes de F. deiroleucus estão limitados a poucas áreas nos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e sul de Minas Gerais (ICMBio 2008, Ribeiro et al. 2011). No restante do domínio sua ocorrência é uma incógnita, não é observado há décadas. Devido à carência de informações é difícil apontar se a espécie está em declínio populacional ou não. Além da raridade natural, seu comportamento também colabora com o baixo número de registros em campo. Provavelmente passa maior parte do dia empoleirado e escondido na floresta, evitando os horários quentes do dia. Em voo pode ser difícil distingui-lo do cauré (Falco rufigularis) que é mais comum, cuja fêmea tem quase o tamanho do macho de F. deiroleucus.

Murucututu (Pulsatrix perspicillata) - Na Mata Atlântica ocorre a subespécie P. p. pulsatrix, que se distribui por toda a extensão do bioma. Conta com poucos registros recentes, a maioria estão concentrados na porção nordeste, da Paraíba até o sul da Bahia (Wikiaves 2016). No sul do Brasil não é registrada há mais de uma década (ICMBio 2008).

Coruja-preta (Strix huhula) – A espécie conta com poucos registros no domínio, em geral, pontuais. Habita florestas preservadas, várzea e borda de matas, normalmente em altitudes desde o nível do mar até 500 m, raramente ultrapassando 1400 m. Há casos inusitados de Strix huhula habitando parques urbanos ou praças, como já registrado nas cidades de Belo Horizonte/MG, Petrópolis/RJ, Niterói/RJ e Valença/RJ (Vasconcelos & Diniz 2008; Lemos 2009; Felippe 2016). Esses registros sugerem que mesmo pequenos parques inseridos em áreas urbanas são importantes na manutenção de alguns indivíduos de espécies raras como é o caso da coruja-preta.

Espécies provavelmente extintas da Mata Atlântica

Alguns rapinantes, ainda listados em muitas listas estaduais, provavelmente já se encontram extintos da Mata Atlântica, alguns nunca foram sequer fotografados no domínio.


Tanatau (Micrastur mirandollei), espécie de distribuição restrita e muito rara na Mata Atlântica.
Foto:
Rosemari Julio.

Gralhão (Ibycter americanus) - A subespécie I. a. pelzeni está possivelmente extinta, originalmente ocorria desde a Bahia até São Paulo e Paraná. É um falconídeo florestal, associado a matas próximas de rios, clareiras e bordas de matas bem conservadas. Seu ultimo registro na Mata Atlântica é da década de 20, obtido no sul da Bahia (Pinto & Camargo 1948; Pinto 1978; ICMBio 2008). Também conta com registros antigos no interior de São Paulo (Silveira et al. 2009; Ridgely et al. 2015).

Caburé-de-pernambuco (Glaucidium mooreorum) - Descrita em 2002 foi recentemente declarada extinta da natureza (Pereira et al. 2014). É uma corujinha endêmica da Mata Atlântica do Pernambuco, registrada apenas na Reserva Biológica Saltinho/PE, de 565 ha, e em um remanescente florestal particular de aproximadamente 100 ha. Desde sua descoberta nunca mais foi registrada, várias expedições foram realizadas nos fragmentos da região na tentativa de reencontrá-la, mas todas sem sucesso.

Ainda há muito a ser descoberto sobre as aves de rapina da Mata Atlântica. Espécies raras ou de hábitos crípticos, como as dos gêneros Accipiter, Micrastur, Pseudastur, Spizaetus e Strigiformes, ainda contam com escassas informações biológicas. Estudos relacionados à ecologia e distribuição de aves de rapina são imprescindíveis para o desenvolvimento de estratégias de conservação. Atividades como as de birdwatching também fornecem informações importantes, auxiliando programas de monitoramento e conservação de aves e habitats.

Artigo completo com referências bibliográficas, lista de espécies e outras informações:
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Citação recomendada:

Menq, W. (2016) Aves de rapina da Mata Atlântica - Aves de Rapina Brasil. Disponível em: < http://www.avesderapinabrasil.com/arquivo/artigos/ARB4_2.pdf > Acesso em: .



 

 
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